O Manifesto Gaymer

Henry Lorenzatto
23 min readAug 5, 2021

Olá meus Homo sapiens. Confesso que esse artigo demorou a sair, acho que foi meu primeiro verdadeiro bloqueio como escritor, não porque eu não sei o assunto, mas porque não sabia como falar de algo tão sensível sem ser prolixo demais, ou didático demais, ou agressivo demais e pra falar a verdade, eu ainda não sei, mas eu vou escrevendo e esperar pelo melhor.

Diversas vezes vocês escutam de mim que “tudo é político”. Mas me incomoda que exista um ruído nessa comunicação, pois de pronto aparece alguém para falar “explica como Tetris é político então”. Eu decidi então tomar uma abordagem completamente diferente.

Porque eu posso gritar palavras ao vento aqui, o que eu escrever, quem já de pressuposto concorda comigo só vai sentir seus pensamentos reafirmados e vai me parabenizar, curtir, compartilhar e embora eu adore a exposição e carinho, eu quero atingir pessoas que discordem de mim.

Como eu faço para reter alguém o suficiente que ele reflita sobre isso?

Autoria: Wenjia Tang

Eu não vou tratar jogo ou cultura pop como político, tratarei como algo mais fácil de relacionar à vida, como um artigo de cultura e de construção social. Dessa forma, apenas no final a política precisa entrar.

E mais uma promessa: no final do artigo vou contar para vocês porque chamo meus leitores de Homo sapiens.

Primeiro quero colocar um Tweet que troquei com meu querido amigo Eddy Venino há alguns meses. Embora ele não tenha o tema principal, servirá de ponto de partida:

“Games é a única área da cultura e arte que tem seus integrantes lutando para não serem levados a sério.

Fotografia lutou quase 100 anos para ser considerada arte, só conseguiu na década de 70/80 e games luta’ para ser considerado supérfluo, desimportante e brincadeira.”

O que me leva a fazer esse artigo é justamente o que alguns chamam de esvaziamento do debate, e outros de infantilização da cultura pop.

Meu nome é Henry Lorenzatto, sou Editor de Games na GeekPop News, formado em Fotografia pela Universidade FUMEC (BH) em 2015, e formado em Jogos Digitais pela Universidade FUMEC em 2019 e precisamos falar sobre a sociedade e cultura Pop.

Antes de começarmos precisamos definir três termos. Sim, eu sei que essa parte didática é chata, mas se não definirmos essas três coisas o fluxo do texto não consegue se manter. Peço desculpas de antemão pela necessidade didática.

1- SOCIEDADE

O que é sociedade? Bem, a resposta disso está no âmbito da filosofia abstrata e realmente não ajuda nosso desenvolvimento. Mas a pergunta “o que constitui uma sociedade?”, essa sim pode ser útil.

Uma sociedade é o conjunto de pessoas com sentimentos de comunidade/nação/tribo que se reúne para produzir um ambiente fundado em instituições. Ela é dotada de um compasso moral e leis para manter a ordem e o mecanismo. Suas histórias, costumes, desejos, artes, conhecimento, crenças, assim como moral e leis, são chamados de cultura.

Autoria: Kathrine Anderson

2- NORMAL

Essa palavra parece não precisar ser explicada, mas a verdade é que dizemos ela diariamente na nossa vida sem entendê-la.

A palavra normal na verdade é bem grosseira. Um termo mais longo porém mais preciso é “socialmente aceitável”. Afinal, o que é Normal?

Normal é todo ato, pensamento ou instância aceita pela sociedade como algo correto. Pensa assim, o que é normal agora não era normal há 100 anos, como o voto feminino, por exemplo. Mas não só, isso reina sobre todas as coisas da nossa vida, época e espaço. O que é normal aqui, não é normal no Japão. Há 10 anos era normal tocar campainha, hoje temos uma geração inteira que liga para a pessoa na porta da casa mas não bate campainha.

Normal não é uma palavra do SER e sim do ESTAR. Por isso socialmente aceitável se torna uma definição melhor, pois “normal” tem percepção de signo de algo permanente e fixo.

mustafahacalaki/Getty Images

3- CONSTRUÇÃO SOCIAL

Dessas, essa é provavelmente a mais vista no Twitter ou Instagram. Construção social é exatamente o que ela fala, é como uma pessoa se constrói na sociedade, como ela se percebe, como ela reconhece as coisas, como ela vê e interage com a sociedade.

Ela se aplica em toda a extensão do ser, desde em coisas simples como achar que gargarejos de água e sal curam a dor de garganta, a coisas mais profundas como papel de gênero.

Importante falar que em sua construção, se você segue a normalização da sociedade, você é considerado normal. Porém, é a partir das construções sociais que o que é definido como normal ou anormal é estabelecido.

Com esses termos devidamente explicados, podemos voltar ao assunto. Vamos colocar a seguinte frase para ilustrar.

IMAGINE UMA COR NOVA.

Não conseguiu né?

Já ouvimos isso muitas vezes, e normalmente isso é aplicado quando estamos nos referindo à criatividade. Pessoas falam que criatividade não é criar algo novo e sim pegar duas coisas que existem e criar algo não antes visto.

Exatamente assim, funciona qualquer coisa na sociedade. Sim, eu sei que parece limitante, mas olhe quantas coisas existem, é um finito que é infinito, pois não dá para mensurar tudo durante a vida.

Então qualquer obra como Sandman, Mona Lisa, Harry Potter, Avengers e muitas outras tem origem da sociedade e são regulados e construídos por ela, e eles também em contraponto ajudam a construir a sociedade.

Parece um cabo de guerra se imaginarmos. A cultura ensina ao mesmo tempo em que a sociedade dita a cultura. Uma real situação de “quem veio primeiro? O ovo ou a galinha?”

Quem veio primeiro não importa, o que importa é entender que esse processo é o que transforma a sociedade em algo orgânico em constante mutação e desenvolvimento, a que chamamos de mudanças de paradigmas, mas não precisam se ater a isso.

Lá atrás, quando eu estava falando do que constitui a sociedade, omiti que a moralidade e a lei regulam uma a outra. Vamos dar exemplos.

1- Até 1885 era um crime ser abertamente contra o sistema escravista, isso era a lei. A sociedade que por várias forças de construções sociais orgânicas, questionou a lei e assim moralidade e lei se regularam.

2- Em certos lugares, leis são feitas para ensinar comportamento adequado à população, como a lei seca por exemplo. Essas leis são feitas para serem temporárias e, por meio do poder institucional, ensinarem a sociedade a ter um comportamento para o melhor desenvolvimento da própria.

Vale lembrar que leis são definidas a partir de uma média de moralidade e cultura da maior parte da população para dar garantias e seguranças para o maior número da sociedade possível.

Como tudo isso é criado pela sociedade, só pode existir a partir dela. E o que isso significa?

Significa que tudo que criamos sai de nossa construção social, quando Sandman cria um ser fantástico, ele tem sua origem em algum conceito ou ideal da sociedade. Quando Avengers faz sucesso não é “super heróis wohoo, nada a ver com o mundo”. Tem alguma base social, pois ele ensina sobre a sociedade também a partir de coisas que conhecemos. Nem sempre é nítido e às vezes é bem sutil.

Não se sai da sociedade, não cria-se algo do nada, tudo é criado a partir de fatores conhecidos e existentes, sejam questionamentos ou sejam representações, sejam a garras do Wolverine, tudo tem origem e motivação da sociedade ou observado por ela.

Pior ainda são as vezes que não são sutis, mas que são normalizados ou socialmente aceitáveis. Por exemplo, jogos sempre abordaram temas sociais. O que chamavam de doutrinação ou dogmatização sempre existiu, pois o tempo todos somos expostos a artigos de cultura que tem uma construção imbuída, mas não são reparados. Por que?

Simples, porque as construções sociais vigentes não são percebidas. Quando algo é aceito e visto como normal perante a sociedade, você não repara, pois não existe choque e nem conflito, é algo 100% socialmente aceitável. Só é reparado quando algo entra em conflito com tudo que você foi ensinado.

Quando algo é ensinado como ético, moral e normal, o que não coincide com isso se torna uma ignorância e um afronte, o primeiro instinto é o repúdio. PRINCIPALMENTE se o repúdio a essa coisa também faz parte de sua construção.

Historicamente por motivos que vão de sociologia, filosofia e psicologia, a cultura sempre foi a primeira a debater e questionar a sociedade e suas falhas:

Cria uma construção >> falhas aparecem >> cultura questiona >> desse questionamento o paradigma muda >> com essa mudança novas falhas aparecem…

E assim a sociedade se mantém em constante mudança orgânica.

A cultura pop abrange jogos, cinema, livros, mangás, HQs, e todos esses são artigos de cultura. Eles são a própria expressão do humano na sociedade, e por isso o questionamento delas, não é novidade, não é doutrinação de minoria. Ele é intrínseco.

A cultura como um todo funciona desse modo, mas aqui estamos falando para um público que consome cultura pop. As coisas faladas aqui também se aplicam a esportes, belas artes e muitos outros. Todos têm profunda influência no desenvolvimento da sociedade e do indivíduo.

Ok, até agora temos:

1- Artigos de cultura não aparecem do nada, eles têm como base a sociedade e aconstrução social.

2- Instituições (leis) e população (moralidade) regulam uma a outra.

3- Oque é considerado normal também é ensinado da mesma maneira em artigos de cultura, apenas não é percebido.

4- Os artigos culturais moldam e ensinam a sociedade e sua percepção de tudo ao redor.

Existem muito mais coisas para discutir e se desenvolver a partir dessas 4 premissas e vamos desenvolvê-las agora com exemplos reais da cultura pop.

Exemplo 1 — Vídeo Games — Dead or Alive Xtreme Beach Volleyball

Fonte: Tecmo

Uma maneira simples de perceber a construção social e a influência que ela tem sobre o indivíduo e a sociedade em geral é uma comparação simples e direta com outras culturas e como elas se desenvolveram.

O Brasil, embora tenha vivido um período de maior restrição durante a ditadura, sempre foi um país de libertinagem sexual com a cultura do carnaval, crianças dançando “É o tchan”, mulheres seminuas apresentando programas infantis, dentre outros. Por isso nada de estranho é percebido quando um jogo de mulheres seminuas jogando vôlei de praia é lançado.

Estamos expostos a isso desde sempre, a construção não precisa ser explícita.

Agora eu te pergunto meu querido Homo sapiens. Se esse mesmo jogo fosse lançado no Egito, existiria um problema? Ele seria aceito ou seria censurado?

De certo você sabe que ele seria censurado. Pois isso é um tabu na sociedade Árabe. O compasso moral deles classifica isso como errado, então é construído desde pequeno neles que nudez é algo a ser evitado.

Fonte: Tecmo

“Ah Henry, mas se for assim essas feminazis estão tentando fazer censura igualzinha”

O movimento feminista não é contra nudez e nem transformar a mulher em uma puritana, pois isso já é outra opressão feita à mulher. A crítica existe à objetificação do corpo da mulher para servir o homem e ao homem achar que tem direitos sobre algo que não lhe pertence.

Toda forma de artigo cultural vai influenciar na construção e como a sociedade se vê, criando a estrutura social, mantendo a instituição e criando assim um paradigma inteiro.

Mas uma coisa não se encaixa.

Se artigos de cultura ensinam a sociedade a se construir e a sociedade cria esses artigos de cultura baseado na própria construção. Então como a sociedade muda? Pois com essa hipótese a sociedade deveria estar se reciclando, e em vez disso ela fica mudando de paradigmas.

Essa exata pergunta é a resposta da pergunta feita pelo fundador do GeekPop News sobre o porquê é importante a cultura pop abordar pautas sociais.

Exemplo 2- Vídeo Games

No início eu tinha falado que a lei e moralidade se regulavam e isso é verdade. Mas de propósito eu deixei de fora outra afirmação.

A sociedade e a cultura também se regulam. Cultura tem vários sentidos, vou deixar essa citação de Edward Burnett Tylor e depois desenvolver.

Cultura em sua essência é a própria expressão do ser e da sociedade. Quando existe um problema na sociedade, para expor, ensinar, debater e criticar esse problema, historicamente além de protestos e guerras, a cultura tomou carro de frente, inclusive a cultura em sua grande maioria expôs o problema primeiro.

Logo se a sociedade tem um problema que deseja ser debatido, serão criados livros, séries, teatros, games, filmes, animes, mangás, HQs e etc. Isso sempre foi assim.

Então, artigos de cultura expõem e ensinam uma construção, estabelecem uma estrutura, normalizam costumes e também questionam insatisfações.

A maior parte das críticas de usuários mais conservadores aos jogos atuais são uma misturas das seguintes frases:

“Não põe política no meu joguinho”

“A lacrosfera quer doutrinar nossas crianças”

“No meu tempo jogo era só pra divertir, agora é tudo politizado”

“Deixa meu joguinho em paz”

Autoria: Kathrine Anderson

Esse tipo de relativização se chama esvaziamento do debate, onde um tema é infantilizado para desprezar todas as consequências sociais que são intrínsecas dele.

Normalmente o divisor para a maioria dos gamers é 2008–2009 onde para eles jogos começaram a estar infectados com política, lutas de minorias, lutas de classe e etc.

Vamos aos exemplos:

Super Mario World dentre outros da franquia

Autoria: Nintendo

Em partes do jogo, precisamos jogar o Yoshi, nosso companheiro que é uma alegoria para cavalo, de um precipício para conseguir seguir em frente. Embora muitos fiquem tristes com a situação (o que já demonstra uma mudança na construção social em relevância a animais) isso não foi censurado.

Se na mesma cena tivéssemos atirado o bebê Mario do penhasco, de certo essa cena teria sido censurada em vários países.

A violência a animais é justificada em vários países e dificilmente isso seria um conflito, a menos que o animal fosse um cachorro ou gato.

“Nossa Henry nada a ver, você tá falando de algo que nunca aconteceu como exemplo”.

Sim, verdade. Nunca conseguirei provar isso e é por isso que tenho muitos outros exemplos.

Metroid

Em 2016 eu estava no meu primeiro período de jogos digitais. Um dia, em uma rede social, um colega postou a foto do Mario, Link e outros heróis de jogos clássicos.

Atreladas a imagem estava a frase “não importa o quanto briguem, o papel do herói sempre será salvar a princesa”.

Após bloqueá-lo me lembro de me questionar como ele tinha se tornado assim.

Ele foi construído assim, e na própria imagem estavam os próprios jogos que contribuíram com essa construção. Era claro nesses jogos qual era o papel da mulher, ele sempre viu a mulher como aquele ser indefeso que fica esperando por um homem, ele cresceu assim, ele foi construído assim.

Um exemplo de um choque cultural nítido é o Jogo Metroid. O jogo foi uma revolução de sua época, várias mecânicas novas foram implementadas, porém, ainda hoje uma das coisas mais comentadas é o choque na população quando viu que o protagonista era uma mulher.

Autoria: Nintendo

A revelação de que Samus era uma mulher quebrou o frágil mundo do nerd raiz. Se o papo de papel de gênero é “mimimi” se não teve conflito de construção social, porque uma personagem protagonista feminina causou tanto espanto?

Simples, as pessoas não esperavam ver mulher em papel de protagonismo, muito menos em um papel de independência em que um homem não era necessário. A quebra das caixas pré determinadas do que é pertencente ao feminino e masculino é até hoje um tabu para o nerd.

De alguns tempos para cá, mais mulheres ganharam espaço, assim como outras minorias, na esperança de que o artigo de cultura ensine às novas gerações e às pessoas mais velhas a nova realidade desejada de igualdade, inclusão e integração social.

Mais uma vez entramos em “Normal” reforçando que essa palavra é um conceito temporário para corresponder ao que é socialmente aceito.

Wolfenstein e The Last of Us Part II

Dois jogos que abordam muitos assuntos classificados como “políticos” para gamers são Wolfenstein e The Last Of Us Part II, porém, apenas um deles leva essa fama. Porque?

Aqui voltamos ao caso da normalização e o que é considerado normal. Jogos que enforcam construções vigentes e normais na sociedade não são percebidos.

Porém aqui também existe um fato chamado conflito de gerações.

Toda geração cresce em um determinado paradigma social, com suas devidas construções e normalizações. Porém, a sociedade está em constante mudança. Quando um paradigma social muda em algum lugar, não necessariamente a população daquele lugar acompanhará essa mudança. Aqueles que continuam com adesão de outro paradigma são chamados de conservadores.

Em épocas de mudanças de paradigmas existe um conflito incessante entre um paradigma e outro.

Wolfenstein abordava o tema político da guerra e da ideologia nazista, algo que nenhum paradigma entra em conflito quanto à sua necessidade de repudiá-lo. A guerra é considerada uma necessidade inevitável, embora deva ser evitada sempre que possível.

Logo, embora ele estivesse construindo a normalidade do repúdio ao nazismo e o entendimento de conflitos de violência como parte da história humana, nada disso era percebido como político pelo jogador conservador.

Era apenas normal.

Agora, The Last Of Us II trouxe duas situações de conflito para o jogador conservador. Mulher em posição de poder e visibilidade LGBTQIA +. Isso é percebido como “político”, pois é uma construção social alienígena ao conservador, que, em sua própria construção, considera isso como algo que deve ser repudiado e escondido.

Então, não começaram a abordar questionamentos, conteúdos ou pautas sociais agora. A cultura pop sempre fez isso, pois é seu papel, é o jogador que tem uma ideologia antiga e que a sociedade não acompanha mais.

Exemplo 3 — Séries e Filmes

Último exemplo antes de entrarmos na política. Artigos de cultura também funcionam como um extintor de ignorância.

Muitas coisas na vida são repudiadas por ignorância ou medo.

Assim são criados os estigmas, preconceitos, discriminação e estereótipos.

Cabe à cultura e suas expressões trazer conhecimento e visibilidade sobre esses assuntos e assim construir uma sociedade menos ignorante.

O único jeito de acabar com a ignorância é a exposição. E esse é outro motivo que a cultura pop atual dá visibilidade e representatividade para grupos de pessoas que sofrem com a ignorância da sociedade.

Vamos pegar dois grupos, PCDs e trans.

Atualmente houve uma explosão considerável em representatividade trans no cinema e TV.

Antigamente quando tinham, a representação era para chacota, para enforcar o antigo paradigma social que tinha como objetivo marginalizar e esconder esse grupo. Expondo claramente a sua vontade de que ele não deveria existir.

Mas de algum tempo para cá, a representatividade está sendo feita para representar vidas, conflitos e dores verdadeiras. Existem dois tipos de representatividade, que normalmente não seriam percebidos pelo conservador, já que normalmente ele só muda de canal.

1 — A representatividade para o grupo. Feito para personagens LGBTQIA+ conseguirem se ver na TV, criar inspirações e às vezes até conseguir se entender melhor. POSE, Queer as Folk, Genera+ion são exemplos de séries feitas para o público LGBTQIA+

2 — A representatividade para tentar ensinar pessoas fora do grupo a entenderem o grupo. Pessoas que não fazem parte de uma minoria raramente entendem coisas simples que a minoria aprende apenas vivendo. Logo, séries especiais são feitas para esse público aprender. Sense8, Love Victor ou Sex Education se enquadram nessa categoria.

Isso é muito nítido pois atualmente na TV, a grande maioria dos personagens trans criadas com o intuito de ensinar à população são personagens transgêneros homossexuais. O objetivo é fazer a distinção clara de Sexualidade e identidade de gênero.

Muitas pessoas ainda acreditam que “esses trans faz o que faz pra pegar o sexo oposto sem ser pego e enganar o homem de bem”.

Isso é um erro grotesco que perpetua há décadas para degradar a legitimidade da comunidade. Em resumo para não entrar tanto no assunto: sexualidade é sobre quem você se atrai, identidade de gênero é sobre quem você é.

PCDs até hoje tem péssima representação em todas as mídias e são um exemplo da necessidade disso mudar. Quantas pessoas não se incomodam com pessoas com deficiência em locais de acesso da população? Quantas pessoas os tratam como pessoas que merecerem dó? São tratados como semi-humanos.

Cabe à cultura expor o problema e escrever mais personagens com deficiência nos roteiros.

Não era há tanto tempo, pessoas com algum tipo de deficiência tinham que ficar trancadas em casa definhando. Tinham escolas “especiais” criadas para segrega-los da população por serem considerado um estorvo para a maioria, eram isoladas da sociedade.

Sabe como isso mudou (mais ou menos)?

Visibilidade, eles saíram de casa, apareceram em filmes, séries, Jogos e as pessoas perceberam uma coisa que devia ser óbvia, eles sempre foram pessoas.

Quando algo é tratado como diferente, essa coisa será vista como diferente. A única forma de algo ser normal é o conhecimento, é a convivência.

E a cultura Pop tem um papel fundamental nesse tipo de representatividade.

Agora está na hora de começar a dar o amarro político na cultura pop.

Por que a cultura pop, assim como tudo, pode ser chamada de política?

Primeiro temos que definir o que é política. Embora seja algo de ampla definição, mais do que temos espaço aqui, política é mais do que apertar uns números aleatórios em uma caixa eletrônica e esperar pelo melhor.

Política

É a arte de decisão que guia a sociedade. É o poder de dizer como a sociedade seguirá, em que focar e dizer quem ela é. Fazer manutenção das instituições e garantia dos direitos e deveres de um povo. Pode parecer distante, mas todas as definições e construções da sociedade foram uma decisão política, consciente ou não.

Quando pensamos nas construções pensamos logo nas pautas populares como, racismo, misoginia, previdência social e muitos outros.

Eu já citei que envolve todo o nosso processo de reconhecimento como pessoa e da sociedade, mas acho que não citei o quão profundo.

O conceito de pegar um ônibus é uma construção social, fomos socializados à ver isso como normal, quando o que realmente acontece é:

Uma pessoa entra em um veículo repleto de desconhecidos, com um motorista também desconhecido, ela com apenas a confiança acredita que o veículo irá passar perto de onde deseja ir e a troca monetária para essa viagem é comunitária, pois a viagem é paga por todos os desconhecidos que estão no ônibus.

Olha como essa coisa absolutamente estranha nos parece completamente natural, tanto que nem paramos para refletir sobre.

Jimmy Turrell

A socialização de uma criança é a própria construção dessa criança, quando a mãe fala que não pode pegar um brinquedo de outra criança no parque, aquilo é uma construção social, a mãe tá ensinando a respeitar posse de outro, pois na sociedade se uma pessoa tem posse de algo e você pegar, isso não é aceito socialmente.

Pode parecer óbvio, mas pense nos filmes do Tarzan. Tanto a animação quanto os live-actions. Quando ele via objetos novos de outras pessoas, ele apenas pegava e observava o objeto, depois apenas jogava no canto. A própria ideia de posse é uma construção social.

Acho que esses exemplos mostram o quão à mercê da construção social nós vivemos.

Agora que temos a construção social e política melhor definidas, podemos ir para os exemplos.

Primeiro Exemplo Político — HQ

Provavelmente, se você gosta de quadrinhos, você gosta de heróis como Batman ou Tony Stark.

E se eu te contar que eles têm dentro de si os ideais liberais que estão há décadas sendo normalizados? Claro, não é dito explicitamente.

Batman é um herdeiro bilionário que com seu dinheiro poderia acabar com todo crime e miséria de Gotham, mas prefere gastar milhões para ser “herói” da cidade.

Autoria: DC

1- Batman nos ensina a desconfiar e antagonizar a força do estado que foi feita para proteger o cidadão.

2- Ele se põe como vigilante, mas se recusa a dividir a tecnologia que usa para proteger com o estado, deixando a população precisando dele ao invés de ensiná-los a se defender.

3- Ele age por conta própria. Não teve votação da população. O que ele faz foi uma decisão apenas dele, porém que tem consequências na sociedade inteira.

Todos esses são ideais liberais:

1- O estado mínimo então abre uma desconfiança com o estado.

2- O respeito à propriedade privada acima de tudo, até do bem comum.

3- O último o descaso com a opinião popular, o pensamento é do indivíduo e se ele pode pagar, ótimo.

Inclusive a premissa de um vigilante autônomo é a mesma premissa das milícias.

Autoria: DC

“Nossa Henry mas ninguém vê isso, só vê lutinha”

As assimilações que fazemos de repetições de coisas simples abrem a mente da população para entender melhor as ideias. Mas existem personagens mais explícitos.

O Capitão América tem imbuído nele todos os ideais americanos. Ele é uma propaganda em movimento do “American way of life”, mas ele também é muitas coisas.

Ele mostra como o americano é sempre o bonzinho e o vestido de vermelho com sotaque alemão ou russo é sempre mostrado como vilão. Mostrando para as crianças quem é o herói.

Autoria: Marvel/Disney

Ou talvez Disney, que sempre colocava vilões com aparências queer, uma escolha política ensinando a população que pessoas LGBTQIA + são vis.

E por último desse tópico, a decisão política de perpetuar a mulher como dona de casa fazendo das princesas da Disney mulheres que tinham que ficar bonitas pois qualquer hora apareceria um homem que mudaria a vida delas.

Esse último foi comprovado de que uma geração inteira de meninas americanas cresceu até 7 vezes mais insegura que meninos na mesma época.

Essas decisões não foram feitas por acaso, foram decisões políticas da aceitação e idealização do que um americano deveria ser, e a política endossou e incentivou iniciativas que tinham essa construção em mente.

Como foi o caso das boy bands de cantores negros que foram deliberadamente abafadas para não estragarem a imagem do que eles queriam que fosse a música americana.

Se para conseguir sucesso uma pessoa precisa dar 10 passos e outra precisa da 100, isso é uma escolha política, pois o governo que decide como os privilégios são divididos.

Segundo Exemplo Político — História

Esse não é da cultura pop mas merece seu espaço. Por favor, lembre da estátua queimada em São Paulo há pouco tempo.

Agora pense em Tiradentes. Porque ele é famoso? Porque ele tem um feriado?

“Uai Henry, porque ele foi um inconfidente morto famoso.”

Sim, mas porque ele? Tinham vários inconfidentes, inclusive tão importantes quanto ele, porque o dia não chama dia da inconfidência mineira então?

Simples, pois o que se destaca e se esconde da história também é uma decisão política. Um país recém formado precisa de uma identidade nacional e a criação de heróis nacionais é uma boa maneira de manter a união e evitar revoltas.

Até a história e o que é contado dela é uma decisão política.

Terceiro Exemplo Político — Anime e Animações

Esse exemplo é uma evidência de como a americanização funciona.

A maioria das histórias que consumimos da cultura nerd tem duas origens estrangeiras.

Estados Unidos e Japão.

Mesmo a japonesa foi americanizada. Durante o período Meiji aconteceu a americanização do Japão de durante os últimos 50 anos do século XX os EUA injetaram dinheiro no Japão para manter ele “capitalista” e, assim, parar a força da URSS na Ásia.

Então evidentemente o Japão foi americanizado, tanto que o estilo de animação de animes japoneses segue até hoje as leis de animação da Disney.

Quantos natais com chaminés você já não desejou? Quantos conversíveis?

Estamos há mais ou menos um século sendo americanizados com sonhos da cultura de outros.

Nós temos dificuldades de entender narrativas de mídias de outros países pois Hollywood praticamente só usa a jornada do herói, fazendo nossa recepção a outras narrativas bem limitadas.

Todas essas consequências e realidades são resultados de decisões políticas conscientes.

“Mas Henry, por que eles fazem isso?”

Para se manter no topo eles têm que manter o nível de vida do americano, e para isso eles precisam vender.

Hipóteses

Ok, agora que terminei de expor a cultura pop como um artigo intrinsecamente social e político, voltamos ao último impasse.

Porque Videogame faz questão de não ser levado a sério? O que aconteceu com o gamer para ser muitas vezes usado como massa de manobra de político sem perceber?

Quantos abraços os gamers tem que receber para perceberem que estão sendo usados politicamente?

Se eles pressupõem que jogo é só brincadeira e supérfluo, eles nunca vão conseguir ver o mundo ao redor.

Eu elaborei uma hipótese de 3 partes do porque os gamers chegaram ao estado em que estão.

Eu disse “eu”, pois diferente da maioria do conteúdo que eu fiz, essas hipóteses são completamente de opinião própria. Nenhum estudo foi lido para chegar até elas.

1 — Dificuldade da linguagem

O gamer brasileiro cresceu com os jogos em outro idioma. Diferente do que o nerd possa achar, a quantidade de pessoas que falam inglês no Brasil é bem pequena.

Isso significa que ele não conseguiu ler narrativas, refletir sobre ideias, definir estratégias. Jogo para o gamer brasileiro era puro reflexo e velocidade nos dedos.

Isso limitou o gamer brasileiro a não ver jogo como algo além de físico. Jogo era algo pra passar o tempo, só.

Jogos em português só ficaram comuns no final do ps3 e nessa altura, 3 gerações de gamers já tinham sido criados.

2- Acesso e Valor

Uma vez questionei um amigo porque ele não lia a história dos games.

A resposta além de quebrar meu coração, também me fez refletir que uma geração inteira cresceu com isso no Brasil.

Ele jogava em Lan House, ele não tinha dinheiro para comprar jogos, então pagava alguns reais suados para poder jogar na lan house.

A resposta dele talvez explique uma geração inteira:

“Cada minuto que eu tava lendo a história ou assistindo videozinho, era um minuto a menos que eu tinha para jogar.”

Quando falamos que o gamer não entende o conteúdo que consome, será que paramos para pensar que talvez ele não tenha tido oportunidade de entender?

3- A Política

Essa última teoria é uma das mais prováveis.

Jogo era um prato cheio para a mídia relativizar violência.

Várias vezes jogos foram ameaçados de receber censura pelo seu conteúdo. Alegando que fazia das pessoas mais violentas.

A forma mais simples de se proteger disso era negando jogos como um artigo responsável pela construção. Pois assim, como brincadeira, o jogo se mantinha seguro.

Hoje sabemos com certeza que os jogos não são responsáveis por atos violentos, mas para aquela época, era uma maneira simples do pai tirar a culpa de não prestar atenção nos distúrbios que o filho desenvolveu.

Para que assumir a responsabilidade quando pode culpar o jogo não é mesmo?

Sobre gatilho, uma pessoa com algum distúrbio pode ter gatilho com filme, livro, vendo gente na rua, em suma, tudo. Retirar jogo não vai resolver o problema, pois o problema foi ou socialização da pessoa ou no seu desenvolvimento psicológico. Independente de qual foi, a resposta é terapia.

Infelizmente as consequências que a comunidade sofreu de ser obrigada a se auto infantilizar para sobreviver, perpetuam até hoje.

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Obrigado por esse debate sobre porque a cultura pop é um artigo cultural responsável por nossa construção social e porque ainda temos que debater muita coisa.

Esse manifesto tem o intuito de refutar e explicar porque a maioria das alegações feitas por nerds conservadores estão fora da realidade da cultura nerd.

E por último: por que desde que eu comecei a escrever eu chamo meu leitores de Homo sapiens?

Homo Sapiens todos nós nascemos. É algo inato. Porém eu entendo humano como um adjetivo e não como substantivo. Logo um Homo sapiens pode ser humano ou pode ser um monstro.

Qual é você?

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Henry Lorenzatto

Falo de jogos e política nos jogos. Formado em Game Design e fotografia. Colaborador do SalvandoNerd e ex jornagames 📰 na GeekPop News. henryatto@gmail.com