A História LGBTQIA+ nos Games 2

Henry Lorenzatto
9 min readAug 13, 2021

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— Parte 2

Olá meus queridos homo sapiens. Na parte 1 abordamos a aurora dos vídeos games e da comunidade LGBTQIA + dentro deles. Lembrando que essa análise é um recorte e embora vimos alguns jogos fundamentais para discursar o desenvolvimento histórico de LGBTQIA+ muitos deixaram de ser relatados por tempo, coerência ou apenas falta de conhecimento. Gostaria de citar dois os quais considero de vital importância para o desenvolvimento da matéria.

Primeiro gostaria de citar Chrono Trigger. Flea, ajudante de Magus que embora tenha aparência feminina, se identifica no masculino e usa pronomes femininos na língua original (japonês) se tornando uma amado personagem da comunidade queer e não-binária.

Porém, mais importante para o apagamento LGBTQIA+ que citamos na primeira parte deste artigo está Ayla, onde em certa cena do texto original em japonês revela que ela é bissexual. No entanto, na versão americana as falas foram deliberadamente alteradas para manter um padrão heterossexual.

Esse é um exemplo clássico de apagamento da comunidade para manter uma padrão de moralidade social excludente, onde assuntos naturais como a sexualidade de alguém são vetados para “manter a inocência das crianças”, no mesmo jogo em que vingança, guerra, fome e miséria são abordados de forma natural.

O segundo jogo que gostaria de citar foi lançado antes de Chrono Trigger, se trata de Final Fight lançado em 1989. O motivo desse jogo estar ausente de um número considerável de listas LGBTQIA+ é que a violência injustificavel que ele estava propondo a um grupo minoritário, mesmo para a época, era inaceitável. Na época a Nintendo tinha uma política contra a violência à mulher, o que se mostrou um problema pois o jogo do gênero Beat ’em up tinha duas mulheres, Roxy e Poison como antagonistas.

A solução para o problema de violência a mulher levantado, foi colocar no manual do jogo que as personagens eram duas mulheres transgêneras e o comunicado oficial foi que “Os jogadores iam se sentir mal batendo em uma mulher”. No final as personagens foram completamente retiradas da versão internacional do jogo.

Vale falar que não estava escrito transgênero no manual e sim “Newhalf” que é uma gíria depreciativa usada para se referir a pessoas trans no Japão.

O exemplo de Final Fight está errado em tantos níveis que transcendem a comunidade LGBTQIA +. Legitimiza e incita violência a um grupo minoritário. Desumaniza e humilha pessoas em situação de vulnerabilidade. Ele Desempodera e despreza o valor da mulher. Tira a mulher de espaços de igualdade, visibilidade e representatividade.

Sim, a violência a mulher é um problema sério, mas a resposta não deveria retirar mulheres de espaços, papéis de protagonismo e do seu direito de lutar como mulher independente do homem. Não é a mulher que tem que se retirar para se manter segura, é o homem que tem que ser educado para não violentar a mulher.

A narrativa de isolamento e resguardamento do oprimido para se proteger do agressor é recorrente em todas as minorias e em todas elas, uma farsa. A mulher, o LGBT, PCD, negro e outros não deveriam ter que abdicar de espaços e isentar de oportunidades por medo de uma agressão alheia. Enquanto minorias ficam restritas a espaços pequenos para “se proteger”, os agressores ficam com toda a cidade, impunes de seus ataques.

Porque a vítima é traumatizada e limitada ao escuro enquanto o agressor sai no sol de cabeça erguida como o “cidadão de bem”? Porque ao invés de ensinar pessoas a se esconder ou se proteger, não SE ensina pessoas a não atacar?

Por muito tempo se pensou que o primeiro jogo com casamento LGBTQIA + foi Fallout 2. Embora ele tenha o seu mérito pelas questões que abordou de forma que o plot se desenvolveu em volta disso, o primeiro jogo com essa opção foi Great Greed de 1992 para o game boy. O JRPG se destaca pois no final da aventura o jogador pode escolher qualquer pessoa da corte para casar, inclusive o Rei.

Agora, em 1998, Fallout 2 escandalizou a população ocidental. Não por ter cenas de desmembramentos explícitos, ou violência excessiva com gore. Nem por abordar um mundo pós apocalipse nuclear e muito menos o questionamento do valor de moralidade que damos a alguém julgando apenas pela aparência. Fallout chocou a sociedade por permitir que duas pessoas que supostamente se amavam, se unissem em matrimônio. Pessoas que por acaso eram do mesmo sexo. Olha a audácia do jogo.

O desenvolvedor Tim Caine, que é abertamente gay e casado desde 2012, foi um dos escritores de Fallout 2. Ele disse que adicionar casamento gay foi uma parte da cultura do Fallout:

Tim Caine

Nós meio que gostamos de ultrapassar os limites um pouco. Nem sempre com violência. Queríamos um jogo repleto de comentários sociais. Então [casamento do mesmo sexo] era apenas outra coisa que estávamos fazendo. Eu nem acho que alguém na equipe realmente discutiu sobre isso. Não pensamos ‘Oh meu Deus, isso é uma coisa incrível’. Era apenas ‘Vamos cobrir todas as bases possíveis aqui’. E então seguimos em frente

No ano 2000, dois personagens LGBTQIA + se contrastam, não apenas por estarem no mesmo jogo mas por representarem polos tão diferentes. Em Final Fantasy IX Kuja e Quina são opostos, enquanto Kuja é uma clássica representação estereotipada de um vilão do sexo masculino afeminado, dramático e cheio de maneirismos, Quina é não-binarix, em certos momentos do jogo elx se chama de ela e outros ele e em outro momento do jogo a referência para Quina é S/he, o que faz delx um personagem reconhecido pela comunidade como não-binárix.

Ambos os personagens tiveram sua sexualidade e gênero “nem negada, nem confirmada” pela Square-Enix. Uma prática bem comum e nada estranha dos vários jogos discutidos anteriormente. Era muito importante pra sociedade esconder e abafar padrões que não eram heteronormativos.

Então em todas as mídias aquele “é ou não é?” sempre esteve bem presente. O lugar dos lgbt era no plano de junto, invisíveis e observando o protagonismo de outras pessoas, as pessoas “corretas”. A menos claro, que eles aceitassem o paradigma social e fingissem ser aquilo que eles não eram, o sucesso e protagonismo era algo totalmente aceitável desde que você abdicasse de quem é no processo.

Pode parecer drama, mas é assim até hoje. Quantos atores não escondem sua sexualidade pois se falarem perdem os papéis principais e/ou galãs? Quantos jogos não são chamados de lacração por ter permitido um relacionamento LGBT ou permitir criar um personagem trans?

Escutamos todo dia coisas como “não precisa ficar falando a sexualidade, isso não me importa, o importante é ser bom no que faz?”, “ninguém precisa ficar sabendo a sua ‘preferência’, se for trabalhador e honesto é isso que importa” “ninguém liga se você é gay ou não.”

Se realmente não importasse e se realmente não ligassem, eles não se importariam se falássemos, mas eles se incomodam. A representação constante e diária da heterossexualidade não incomoda eles, mas quando ela acontece ao contrário, se torna um incômodo. Não seria isso oposto a tudo que dizem? Se realmente fosse o que eles falam, a presença de um personagem LGBTQIA+ seria natural e normal, mas quando os veem, se incomodam, sentem estranhamento, choque e repudiam a inclusão.

Outros jogos como, Resident Evil Code Veronica apareceram com personagens tendo sua sexualidade questionada e colocada em pauta apenas por expectativa da percepção visual. Mais uma vez o padrão imposto aos LGBT como vilões foi demonstrado. Representar LGBTQIA + assim cria uma construção social, existente a partir de um preconceito visual. Antes os vilões eram identificáveis por capas pretas e lápis de olho escuro, agora a semiótica claramente se alterou para identificar lgbt e seus estereotipados como vilão.

Não muito diferente da visão que a sociedade tinha sobre lgbt na época. LGBTs eram degenerados, desviados (origem da palavra), delinquentes, confusos, doentes, aberrações, errados, corruptores, endemoniados, diferentes, desajustados, estranhos, anormais e várias outras palavras usadas para abusar, oprimir e justificar violência a outro ser humano.

O exemplo de Resident Evil está longe de ser o único, esse é apenas um dos exemplos de porque videogame assim como qualquer artigo de cultura responsável por reconhecimento e construção social deve ser discutido da forma que são, políticos. Se a sociedade tem uma percepção que é refletida nos video games, então esse video game está ensinando e enforçando essa percepção, construindo assim a sociedade.

Também no ano 2000 surgiu The Sims. Esse jogo é importante por vários motivos, sendo um deles comprovar que o homem, branco, cisgenero, hetero não controlava a indústria, pois embora ele não tenha agradado esse público, ele é até hoje um dos maiores sucessos comerciais da história.

A inclusão de relacionamentos homoafetivos em The Sims foi um belo acidente. Inicialmente os desenvolvedores tinham permitido, porém, depois decidiram retirar.

Todo o acidente aconteceu devido ao programador chamado Patrick J. Barrett III que foi contratado após essa decisão. O diretor de Patrick estava entrando de férias e deu para Patrick um documento antigo, antes dessa decisão ser tomada. Patrick pensou que deveria questionar isso, mas o documento parecia correto, então programou toda a interação dentro do jogo. Depois de um tempo Patrick, que é gay, foi surpreendido pelo criador do jogo Will Wright que o comprimentou por estar satisfeito que relacionamentos homoafetivos estavam de volta no projeto.

Patrick tinha programado no jogo algo que não deveria estar no jogo por decisão superior, mas segundo ele, ninguém se importou ou questionou pois todos achavam que o jogo seria cancelado. A EA não acreditava no jogo, ninguém fora do time que o produziu acreditava nele, ele já tinha quase sido cancelado 3 ou 4 vezes e não existia nenhum hype do público sobre ele.

A única chance que o jogo tinha era criar alguma hype durante a apresentação da E3, a qual a EA não tinha ajudado pois o jogo não estaria na grande tela.

Patrick ficou responsável por criar o trailer do jogo. No trailer da demo apareceriam cenas planejadas, não real gameplay, tudo seria controlado. Uma das cenas era de um casamento. Durante a cena, segundo Patrick foi muito difícil de controlar, pois tinha muitos sims durante o casamento, ele não teve tempo de “settar” todos os sims.

Quando o trailer foi exibido, durante a cena do casamento, todos ficaram chocados com duas personagens do sexo feminino se beijando apaixonadamente. Os produtores acharam que isso ia acabar com o jogo, porém, aconteceu o contrário. The sims roubou a cena de todos os outros jogos durante a E3 e ganhou o hype necessário. Essa entrevista pode ser vista aqui.

Quem diria que The Sims, um dos jogos de maior sucesso da história, seria salvo por um beijo Lésbico?

Essa parte 2 foi mais longa que o planejado, na parte 3 entraremos no novo milênio e falaremos da desenvolvedora que mudou tudo, Bioware.

obrigado pela leitura, caso não tenha lido, segue o link da primeira parte.

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Henry Lorenzatto

Falo de jogos e política nos jogos. Formado em Game Design e fotografia. Colaborador do SalvandoNerd e ex jornagames 📰 na GeekPop News. henryatto@gmail.com